quarta-feira, 2 de maio de 2018

SOBRE O POVOADO DO CINZENTO


Diário de Campo: 25 de fevereiro de 2017.

Hoje somos, quase que irremediavelmente, uma sociedade racional, medida por réguas, moedas, gráficos, likes em redes sociais, cálculos, relógios e referências mecanizantes com foco na qualidade total para a conversão da vida em dinheiro. Isso nos torna reféns de uma percepção pouco afeita a compreender outras formas de compreensão do mundo, sobretudo, aquelas que não podem ser explicadas por uma lógica formal. Neste mundo não cabem o sobrenatural, o encantado e suas narrativas.
Por isso, para o projeto Ritos de Morte, as histórias que me foram relatadas nos últimos anos sobre a Comunidade do Cinzento se tornaram importantes, pelo seu contraponto, por sua divergência peculiar. Por isso, as tomei como objeto de estudo.
No povoado, distrito do município de Planalto, Bahia, a 77 km de Vitória da Conquista, há poucas cerimônias fúnebres. Na pequena comunidade rural de remanescentes de quilombo, ainda hoje arredia à presença branca, as mortes ocorrem de modo espaçado, na maioria das vezes, pelo final da vida de seus idosos, pessoas longevas, de idade próxima ou além dos cem anos. Seus rituais de passagem respeitam tradições antigas. O prestígio do moribundo é medido pela quantidade de visitas que recebe, tendo a família, muitas vezes, que transportar o leito do enfermo para a sala da casa, tamanho o fluxo de pessoas.
Rezas, patuás e outras manifestações materiais ou não
compõem elementos de fechamento de corpo
Por uma tradição pouco aberta àqueles que não são iniciados, muitos(as) desses(as) matriarcas e patriarcas mantiveram, durante a longa vida, meios de proteção mágica de seus corpos e de seus protegidos. Dentre as principais formas de salvaguarda está o fechamento de corpo. São capazes, segundo esta tradição, de feitos sobrenaturais, rezas brabas, transfigurações em animais e objetos, capazes de ficarem invisíveis e saber de coisas quem nenhum outro é capaz de saber, inclusive saber a hora da própria morte.
São curadores e rezadeiras, homens e mulheres respeitados pela sua sabedoria e valores, chamados de “encantados”. Por estes atributos sobrenaturais só podem morrer após terem retirado de seu corpo os ritos do fechamento, em uma cerimônia fechada para muito poucos. Somente então, depois de ter a carne livre dos entraves da busca pela invulnerabilidade em vida, seu descanso é concedido, finalmente. Muitos desses idosos, segundas mães e segundos pais (avós e avôs) de sangue e consideração de toda a comunidade, deixam a vida se esvair envoltos pelo cheiro de flores. São enterrados sob o orvalho da manhã no cemitério do Inácio, no povoado vizinho. O Cinzento não tem cemitério porque acreditam que morte chama morte.
Não raro, as mãos do morto se enrijecem pelo lado de fora do caixão, pelo tempo que passam a receber os beijos de bênçãos dos seus, e é com dificuldade que a colocam novamente na posição para lacrar o ataúde no final da celebração. Há dor e saudade, mas não uma tristeza de perda possessiva. A passagem é uma vitória, um reconhecimento de que viveu para os seus, para o bem e que cumpriu sua sina.
Estes relatos são fragmentos que colhi para o início da pesquisa. A partir deles vou a campo, tentar chegar a essas histórias em sua fonte primária. Já parto sabendo das dificuldades preexistentes. A principal delas é conquistar a confiança da comunidade. Por mais acolhedores que sejam, por mais amistosos que possam parecer, suas histórias – essas histórias em particular – não são para serem compartilhadas com pessoas de fora. Mesmo aqueles que não pertencem à comunidade, mas gozam de muito prestígio e confiança, levaram anos para construir este percurso. Esse é um primeiro e enorme entrave. Mas só poderei saber quando chegar até lá.


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