Diário de Campo: 25 de fevereiro de 2017.
Hoje
somos, quase que irremediavelmente, uma sociedade racional, medida por réguas, moedas,
gráficos, likes em redes sociais, cálculos, relógios e referências mecanizantes
com foco na qualidade total para a conversão da vida em dinheiro. Isso nos
torna reféns de uma percepção pouco afeita a compreender outras formas de
compreensão do mundo, sobretudo, aquelas que não podem ser explicadas por uma
lógica formal. Neste mundo não cabem o sobrenatural, o encantado e suas
narrativas.
Por
isso, para o projeto Ritos de Morte, as histórias que me foram relatadas nos últimos
anos sobre a Comunidade do Cinzento se tornaram importantes, pelo seu
contraponto, por sua divergência peculiar. Por isso, as tomei como objeto de
estudo.
No povoado, distrito do município de
Planalto, Bahia, a 77 km de Vitória da Conquista, há poucas cerimônias
fúnebres. Na pequena comunidade rural de remanescentes de quilombo, ainda hoje
arredia à presença branca, as mortes ocorrem de modo espaçado, na maioria das
vezes, pelo final da vida de seus idosos, pessoas longevas, de idade próxima ou
além dos cem anos. Seus rituais de passagem respeitam tradições antigas. O
prestígio do moribundo é medido pela quantidade de visitas que recebe, tendo a
família, muitas vezes, que transportar o leito do enfermo para a sala da casa,
tamanho o fluxo de pessoas.
Rezas, patuás e outras manifestações materiais ou não compõem elementos de fechamento de corpo |
São curadores e rezadeiras, homens e
mulheres respeitados pela sua sabedoria e valores, chamados de “encantados”.
Por estes atributos sobrenaturais só podem morrer após terem retirado de seu
corpo os ritos do fechamento, em uma cerimônia fechada para muito poucos.
Somente então, depois de ter a carne livre dos entraves da busca pela
invulnerabilidade em vida, seu descanso é concedido, finalmente. Muitos desses
idosos, segundas mães e segundos pais (avós e avôs) de sangue e consideração de
toda a comunidade, deixam a vida se esvair envoltos pelo cheiro de flores. São
enterrados sob o orvalho da manhã no cemitério do Inácio, no povoado vizinho. O
Cinzento não tem cemitério porque acreditam que morte chama morte.
Não raro, as mãos do morto se
enrijecem pelo lado de fora do caixão, pelo tempo que passam a receber os
beijos de bênçãos dos seus, e é com dificuldade que a colocam novamente na
posição para lacrar o ataúde no final da celebração. Há dor e saudade, mas não
uma tristeza de perda possessiva. A passagem é uma vitória, um reconhecimento
de que viveu para os seus, para o bem e que cumpriu sua sina.
Estes relatos são fragmentos que colhi
para o início da pesquisa. A partir deles vou a campo, tentar chegar a essas
histórias em sua fonte primária. Já parto sabendo das dificuldades
preexistentes. A principal delas é conquistar a confiança da comunidade. Por
mais acolhedores que sejam, por mais amistosos que possam parecer, suas
histórias – essas histórias em particular – não são para serem compartilhadas com
pessoas de fora. Mesmo aqueles que não pertencem à comunidade, mas gozam de
muito prestígio e confiança, levaram anos para construir este percurso. Esse é
um primeiro e enorme entrave. Mas só poderei saber quando chegar até lá.
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